Em março de 2020 e no contexto da pandemia, depois das primeiras semanas de confinamento global, as cadeias de fornecimento sofreram alterações que impactaram de forma significativa o transporte marítimo e a atividade portuária. Ricardo J. Sánchez, superior de assuntos econômicos da Divisão de Comércio, Infraestrutura e Integração da CEPAL, fala-nos dos aprendizados obtidos neste longo período de crise e dos desafios ainda vigentes que o setor enfrenta.
O surgimento da Covid-19 em 2020 mudou fulminantemente o cenário político, social e econômico no nível mundial. Quando a OMS deu um parecer sobre a emergência global, a maioria dos governos impôs um confinamento estrito em seus países e a atividade comercial foi drasticamente reduzida. Ainda que o transporte de cargas, como meio indispensável para superar a crise sanitária, seja considerado um serviço essencial, o volume de fretes e as cadeias de fornecimento foram muito afetados, impactando significativamente a atividade marítima e portuária. “O mundo praticamente parou. As fronteiras fecharam e muita carga ficou no caminho porque não podia sair ou chegar até os portos. Igualmente, isso tudo aconteceu pouco tempo após o Ano Novo Chinês, um período de festas no qual o país asiático ficou paralisado, pois havia justamente começado uma etapa febril em compensação”, explica Ricardo J. Sánchez, oficial superior de assuntos econômicos da Divisão de Comércio, Infraestrutura e Integração da CEPAL.
O acúmulo de cargas em pontos estratégicos da rede logística e a fragmentação de rotas marcaram o contexto desses primeiros meses de pandemia, nos quais o setor dependia das decisões governamentais tomadas prioritariamente por motivos sanitários. “Na América Latina, por exemplo, a atividade dos portos estava absolutamente restrita ao regulamento nacional. As medidas de segurança estabelecidas para reduzir os contágios foram bem-sucedidas, mas afetaram a força de trabalho”, reconhece o responsável pela Divisão de Comércio, Infraestrutura e Integração da CEPAL. Todas as atuações administrativas —entrada de mercadorias, controle fronteiriço, etc.— sofreram alterações.
Efeito da pandemia em cifras
Um dos índices que nos permitem avaliar o impacto que a pandemia teve na logística global é a movimentação de cargas nos portos da região, que caiu notavelmente. “Por exemplo, em março de 2020, na América Latina foram movimentados 860 mil contêineres de importação. Em maio este número chegou a 650 mil, isto é, teve uma redução de um mês a outro de 20% da atividade, e as exportações também caíram tremendamente”, explica o especialista em economia marítima e portuária. Essas quedas nos obrigaram a revisar os prognósticos de estabilidade e incremento. Segundo dados da CEPAL, de uma previsão de crescimento de 3,6% do comércio de contêineres em todo mundo no último trimestre de 2019, passou-se a uma estimativa de queda de -7,2% —publicada em julho de 2020—.
Depois desta freada inicial, o comércio foi retomado de uma maneira extraordinária, principalmente na China. “Da mesma forma que foi repentina e forte a queda, aconteceu no sentido inverso. As primeiras decisões de abertura também caem na América Latina e a atividade portuária transbordou pela reativação e pelas operações demoradas. Em novembro de 2020 encontramo-nos em uma situação esplêndida: aumentou quase 40% com relação ao mínimo do ano”, explica Ricardo J. Sánchez. O técnico da CEPAL atribui esta repercussão a uma mudança generalizada nos costumes de consumo, reduzido nos serviços e derrubado nos bens tangíveis.
Evolução do comércio de contêineres (março 2019 – março 2020).
Um dos efeitos desta mudança de tendência é o chamado blanck sailing, isto é, a interrupção de uma escala de um navio —em um ponto, em uma região ou inclusive em todo seu serviço—, causada principalmente pelas novas dinâmicas de mercado que afetam a oferta e a demanda de espaço nos portos e, muito especialmente, as tarifas. “Realmente é uma situação bastante difícil. Um frete, em outubro de 2019, custava ao redor de USD 2.000. Em 2020, atingia USD 2.500, e, em 2021, esse mesmo contêiner custava USD 10.000”, explica.
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Evolução no preço dos fretes.
Em relação à conclusão dos serviços, em 2019 os prazos previstos foram cumpridos efetivamente em 78% das ocasiões. Em 2021, essa cifra caiu a 36%, e atualmente estamos em 34%. “Por exemplo, um serviço da China à Espanha, que implicava 80 dias de travessia em condições normais e parando nos portos apropriados até chegar ao destino, hoje demora pelo menos 100 ou 120 dias. Ou seja, o mesmo serviço, o mesmo barco, hoje demora até 40% mais do que demorava em 2019”, aponta Ricardo J. Sánchez. Esta situação tem provocado um dano importante aos exportadores e importadores, e afetado também a muitos setores, já que derivou em verdadeiro desabastecimento. “Aqui no Chile faltam materiais de construção porque não chegam ou porque têm um preço demasiado alto. Isso afeta igualmente o setor automobilístico e tecnológico”, acrescenta.
Desafios e lições aprendidas
Ainda imersos na crise, agravada pelo conflito entre a Rússia e Ucrânia, os setores marítimo e portuário começam a pesquisar por que estes fenômenos ocorreram no transporte e, ainda que não haja respostas definitivas, há uma grande lição aprendida: a grande transcendência que a logística tem. “Tornou-se visível a importância que ela tem no funcionamento da economia, mas também na vida diária das pessoas, do mundo e de todos os países”, expõe o superior da CEPAL, que adverte que, “em algum momento, deverá haver uma aproximação internacional a este tema tão relevante como o do transporte de contêineres, que pôde aumentar seu preço no meio de uma crise tão grave quanto a pandemia. Provavelmente deveria ser a Organização Mundial de Comércio a revisar o que está acontecendo, de ver se é necessária uma regulamentação internacional.”
Nesta complicada conjuntura, o setor portuário enfrenta outros desafios que o situam em um exigente e emocionante processo de transformação. Sinteticamente, Ricardo J. Sánchez expõe-nos:
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- Compromisso ambiental “para reduzir a pegada de carbono e as emissões em geral da atividade portuária, incorporando melhores práticas de eficiência energética e o uso de combustíveis sustentáveis”, assevera. Outra medida que poderia ser tomada neste quesito seria a incorporação de novas tecnologias para otimizar as operações, gerenciar os resíduos e vigiar o impacto no meio ambiente.
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- Acesso à tecnologia. Embora já esteja sendo incorporada à atividade portuária, trata-se “de um caminho que ainda falta muito por percorrer e constitui um enorme desafio de melhoria. É um desafio duplo: atingir os mais altos padrões da indústria para os portos grandes, e adaptá-los às pequenas e médias infraestruturas, de forma que a lacuna existente não se alargue”, explica.
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- As relações trabalhistas. “As condições de trabalho são um problema crescente nos últimos tempos e requerem uma solução urgente. Não só para reduzir os conflitos, mas também para aumentar a capacidade das equipes de enfrentar os desafios tecnológicos, mitigando os receios e temores de perdas de postos pela incorporação desta inovação”, adverte.
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- A melhoria da infraestrutura de conectividade entre os portos e o interior da economia. “Isto também é um grande déficit na América Latina”, assegura o especialista, que considera ser necessário mais investimento em infraestrutura sob uma perspectiva de responsabilidade ambiental.
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- A adaptação dos portos. “Nos últimos quinze anos ocorreu um aumento muito acelerado do tamanho dos barcos, triplicando o seu volume de carga. Isto requer portos mais profundos, com capacidade de tecnologia, de manuseio de contêineres, capazes de suportar um peso muito maior”, afirma Ricardo J. Sánchez, que reclama “uma infraestrutura maior, mais resiliente e sustentável. E, como disse antes, a capacitação dos trabalhadores”, conclui.
Colaborou neste artigo:
Ricardo J. Sánchez é doutor em economia e um especialista reconhecido internacionalmente em economia marítima e portuária, bem como em transporte e infraestrutura, com especial ênfase na região da América Latina e Caribe. Trabalhou profissional ou academicamente em 30 dos 33 países da América Latina e no Caribe ao longo de 32 anos, bem como na Europa e Ásia.
É o oficial superior em assuntos econômicos da Divisão de Comércio, Infraestrutura e Integração da Comissão Econômica para América Latina e Caribe das Nações Unidas, onde lidera uma equipe de profissionais de alto nível para realizar investigações e proporcionar assistência técnica e capacitação a governos e organizações privadas em matéria de portos e logística, infraestrutura, transporte marítimo e comércio.
Seus principais interesses de investigação são a economia marítima e portuária e a organização industrial aplicada aos mercados marítimos. Tem mais de duzentas publicações entre livros, artigos revisados por pares, documentos de trabalho, etc. Membro das seguintes associações acadêmicas e profissionais: a Associação Internacional de Economia Marítima (IAME) e a Rede de Investigação de Rendimento Portuário (PPRN). Atualmente é membro da PORTECONOMICS.EU, e assessor acadêmico da delegação latino-americana da AAPA.
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