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Desafios do transporte terrestre no Brasil

O Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF) publicou uma série de relatórios que analisam a infraestrutura do transporte terrestre na região, descrevendo sua situação, definindo as necessidades de investimento e identificando o impacto de seus projetos mais relevantes. Irene de Cubas, pesquisadora do Center for Innovation in Transport (CENIT) e coautora do documento que aborda o setor no Brasil, nos fala das conclusões obtidas do estudo dos sistemas por rodovias e ferrovias da região.

A vasta geografia do Brasil faz de sua rede viária um fator fundamental de desenvolvimento econômico e bem-estar. A região conta com mais de 1,7 milhões de quilômetros de estradas federais, estatais e municipais, o que supõe uma densidade viária próxima a 200 km por cada 1.000 km2. Como aponta Irene de Cubas, engenheira civil e pesquisadora do Center for Innovation in Transport (CENIT), sua maior força se encontra na priorização do setor nos últimos tempos. “A construção de rodovias no país foi um processo tardio, derivado da pouca importância do transporte rodoviário até a segunda metade do século XX. Desde então foi adotado um modelo oposto, privilegiando as estradas, os ônibus e os caminhões como meio de transporte de passageiros e cargas, com o objetivo de integrar o território e industrializar o país a partir da geração de polos industriais centrados na produção automotiva. Devido a esta mudança na priorização de investimentos, um dos pontos fortes da malha viária é a alta penetração territorial das redes”, explica.

Essa extensa infraestrutura conta com uma carência em seu desenvolvimento: somente 15% da rede de corredores, em termos de cobertura territorial, é pavimentada. “Existem dificuldades de consolidação à extensão dos percursos, por isso a densidade viária pavimentada é de 25 km/1.000 km2, 30% menor que a média regional da América Latina”, assinala de Cubas. Esta carência ocorre de forma desigual, como nos explica a engenheira civil: dos 1,3 milhões de quilômetros não pavimentados, 1,2 pertencem à rede municipal. A rede federal, no entanto, conta com 86% de pavimentação. “Segundo a Confederação Nacional do Transporte (CNT), em 2018, 42% da rede viária pavimentada encontrava-se em ‘ótimo’ estado, 7% em ‘bom’ estado e 37% em estado ‘regular’. No caso da rede estatal, de 225 mil quilômetros, aproximadamente a metade das estradas estão pavimentadas. Além disso, perto de 10 mil quilômetros da malha são rodovias e muitos trechos estão sob concessão. São Paulo, com quase 5 mil quilômetros de rodovias, tem a maior malha desse tipo do país e o maior número de rodovias sob concessão”, afirma a especialista, acrescentando que essas concessões se concentraram em rodovias em operação para melhorias e manutenção, que difere de outras experiências internacionais em que o setor privado “constrói e explora novas redes”.

Com respeito ao trânsito que sustentam, o transporte de passageiros apresenta uma tendência decrescente, já que perdeu importância frente à mobilidade aérea nas rotas regionais. “Em 2010, registraram-se quase 50 milhões de passageiros, com 23.476 milhões de passageiros por quilômetro, enquanto em 2016 as cifras foram de 39 milhões de passageiros e 19.013 milhões de passageiros por quilômetro. Mesmo assim, o setor tem alta relevância modal: transportou 44,4% do total de passageiros em 2017, com 1,1 milhão de viagens realizadas”, comenta De Cubas.

Segundo o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o transporte de cargas concentra 60% do volume total movimentado no país, sendo os principais produtos sólidos transportados: ferro, cimento, soja e derivados.

 

Uma intensa atividade ferroviária

Como nos explica Irene de Cubas, o Brasil possui o sistema ferroviário ativo mais extenso e intensamente utilizado da América Latina. “Esse sistema é composto, em sua maioria, por linhas de 1 metro de bitola, dispostas nos estados do litoral atlântico e sul, que coexistem com uma sub-rede histórica de linhas de bitola larga (1.600 mm) originalmente desenvolvida nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais”, especifica.

A exploração ferroviária foi afetada pela priorização viária que terminou capturando parte do transporte de cargas e monopolizando o de passageiros. No entanto, a economia brasileira contém atividades da mineração e da indústria pesada em uma escala tal que, para esses comércios, a ferrovia é o modo insubstituível. “Essa realidade, somada ao enorme desenvolvimento da agroindústria, que igualmente gera volumes de tráfego muito altos, e a grande distância de transporte própria do território do Brasil, determina que a participação do modo ferroviário no transporte interno seja o mais alto da América Latina, da ordem de 20% de toneladas por quilômetro”, acrescenta a pesquisadora do CENIT.

Ambas as modalidades têm uma série de infraestruturas de referência que sustentam o tráfego da região.

No setor viário, diversas rotas apresentam valores similares de Trânsito Médio Diário Anual (TMDA), com exceção da rodovia BR-262, em Belo Horizonte, e da BR-116, no estado do Rio Grande do Sul, que superam amplamente o restante. Em uma segunda ordem de magnitude de TMDA, encontram-se as estradas BR-40, em Belo Horizonte, e a BR-101, em Porto Belo.

Quanto ao setor ferroviário, o Brasil é o único país da região que nos últimos 25 anos realizou projetos relevantes de infraestrutura para gerar ampliações estruturais em sua rede ferroviária, principalmente no norte do país. O mais ambicioso de todos eles é o da ferrovia Norte-Sul.

Os corredores importantes encontram-se na costa leste do país, concentrando o volume de cargas na região entre São Paulo e Rio de Janeiro.

 

Carências e desafios na interconexão

Apesar das cifras, e segundo indica o relatório publicado pelo CAF, não existe na região uma boa conexão entre os caminhões de mercadorias e os acessos aos portos. Como assegura Irene de Cubas, as imensas dimensões continentais dificultam esta união entre os polos, tanto rodoviário como ferroviário. “A Amazônia implica uma barreira natural para a construção e a ligação de ferrovias e, no caso das rodovia, são de terra ou não pavimentadas. Por isso, tanto a rede de infraestruturas rodoviárias como a ferroviária se concentra na costa leste do país”, explica.

Diante disso, a região tem optado por incentivar o desenvolvimento de parcerias com o Peru, a Bolívia, Argentina e Chile, por meio da iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA). “Entre as conexões internacionais ferroviárias destaca-se a conexão com a Bolívia, cuja rede tem a mesma bitola que a rede brasileira na região de contato. A atividade é medianamente importante por ligar o centro produtivo oriental boliviano com a área de São Paulo e o porto de Santos, coração industrial brasileiro. Essa conexão que atravessa o rio Paraguai entre Corumbá e Quijarro faz parte do chamado corredor bioceânico, cujo projeto central é a ligação entre as redes andina e oriental da Bolívia, que ligaria as referidas áreas brasileiras com o altiplano boliviano” , explica Irene de Cubas.

Os restantes países limítrofes – Peru, Colômbia, Venezuela, Guiana e Suriname– não têm linhas que cheguem até as respectivas fronteiras, ainda que exista uma conexão com o Peru que dá saída à produção por portos do Pacífico, “sendo esta proposta singular já que tradicionalmente a preocupação do Brasil é levar sua produção para seus próprios portos”.

Os principais planos de melhoria das instituições competentes, e como aponta o estudo realizado pelo CAF, passam por uma carteira de projetos de transporte terrestre intermunicipal de alto impacto. “Entre os projetos selecionados como prioritários para o setor rodoviário no Brasil, podem ser identificados aumentos de capacidade em trechos de alto fluxo veicular, bem como planos de manutenção e repavimentação”, assinala.

No campo ferroviário, as novas estradas previstas formam corredores troncais na região centro do país, que historicamente carece de ferrovias e onde há alto potencial de demanda. “Incluem-se também dois projetos de integração com redes de países vizinhos, sendo um deles o de recuperação e fortalecimento da infraestrutura de uma linha existente que se liga com a rede da Bolívia”, explica. “A análise de priorização mostra que os principais corredores nacionais se concentram nas regiões do centro e sul do Brasil e, na maioria dos casos, têm como ponto focal a zona metropolitana da Grande São Paulo. Alguns desses eixos têm extensões internacionais para o Peru – por meio do mencionado corredor bioceânico – e nas principais conexões do Mercado Comum do Sul (Mercosul) com Argentina e os portos do Pacífico chileno, de forma direta ou pelo Paraguai ou Bolívia”.

 

Perspectivas de futuro e desafios

As perspectivas econômicas do país apontam para um crescimento de 2,8% do PIB ao ano em média, enquanto a população crescerá 0,1% ao ano. Esses fatores indicam que, em conjunto, haverá um importante crescimento na demanda de transporte. “O trânsito veicular crescerá 2,4% ao ano. Isso determinará que o fluxo de veículos cresça 49% em relação ao nível atual até 2030 e 75% até 2040”, esclarece a pesquisadora do CENIT. Tais perspectivas exigem um esforço de investimento que, neste momento, não está ocorrendo na região. “A quantificação da lacuna de infraestrutura mostra como resultado que o Brasil tem uma infraestrutura de transporte de 1.900 dólares por habitante, valor inferior à média da América Latina. No futuro, se o país quiser fechar a lacuna com os países desenvolvidos, os investimentos até o ano 2040 deverão representar 4,1% do PIB anual, além de destinar 1,1% adicionais para a manutenção. Isso implicaria um aumento da ordem de 9 a 10 vezes os valores atuais de investimento, valor considerado difícil de alcançar”, prevê de Cubas.

A especialista também indica as principais linhas de ação que sintetizam os objetivos estratégicos surgidos do diagnóstico realizado pelo CAF:

  • A primeira linha de ação é a integração intermodal, já que não existe uma boa conexão entre os caminhões cargueiros e o acesso aos portos. Com o objetivo de aumentar a eficiência nos tempos de descarga dos caminhões de carga, deve ser construída uma infraestrutura de apoio logístico e haver uma melhoria nos processos por meio da digitalização.
  • O segundo ponto é a segurança viária, uma vez que os traçados geométricos não estão atualizados para limitar as velocidades de circulação dos veículos. Com a finalidade de melhorar as características geométricas das vias federais, deveriam ser revisados os desenhos com foco na segurança.
  • Por último, o terceiro eixo da estratégia de ação do setor terrestre é a digitalização e modernização das redes, já que faltam bancos de dados para um gerenciamento adequado de ativos viários. Para isso devem ser usadas ferramentas tecnológicas para implementar sistemas de gerenciamento de ativos e para aplicar sistemas de gerenciamento de pavimentação e de inventários, bem como planos de capacidade, entre outros.

 

Tem colaborado neste artigo…

Irene de CubasIrene de Cubas, Área de Economia do Transporte do CENIT, é Engenheira de Caminhos, Canais e Portos pela Universidade Politécnica de Cataluña (UPC), com especialidade em Transportes e Infraestruturas. Desenvolveu sua experiência profissional no departamento de Economia do Transporte tanto em projetos internacionais como em estudos de transporte encomendados pela Administração catalã. Alguns dos principais projetos que está assessorando como consultora são: “Avaliação Ex-Pós de Projetos de Infraestruturas do Departamento” de Território e Sustentabilidade da Generalitat de Cataluña, o “Livro Branco da Distribuição de Última Milha” da Autoridade Metropolitana do Transporte de Barcelona (ATM), e a “Análise de Investimentos no Setor de Transportes da América Latina até 2040” do Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF).

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