José Manuel Castillo, Head of Global Marine da MAPFRE Global Risks, analisa o impacto da crise no fornecimento nas apólices de seguro.
As interrupções ou a diminuição na produção mundial causada pela COVID-19, seguida de forte aumento na demanda como resultado dos movimentos de recuperação econômica, provocaram uma crise no fornecimento, não só pela carência de produtos mas pela falta de meios de transporte até o consumidor final. Essa circunstância extraordinária causou tensão em toda a cadeia de transporte. Assim, o aumento da demanda por mercadorias faz com que a produção aumente nos países produtores. No entanto, lamentavelmente, não há suficientes navios no mercado para satisfazer a essa demanda extraordinária de transporte. Além disso, devido às próprias características da construção naval, resulta inviável expandir a frota de navios no curto prazo. Adicionalmente, algumas das principais rotas/infraestruturas marítimas colapsaram durante um tempo, (p.ex., o bloqueio no Canal de Suez) tensionando ainda mais essa realidade.
A principal consequência desta situação são as grandes acumulações de produtos nos portos, já que as mercadorias chegam desde as fábricas ao porto de origem, mas não há suficientes navios para transportar ao porto de destino. A situação complica-se ainda mais quando as mercadorias transitam por portos intermediários, provocando atrasos adicionais, aumentando a média de armazenamento de 15 dias a 90 dias e, inclusive, superando os 120 dias.
Nestas circunstâncias, as apólices de seguros de mercadorias sofrem três importantes consequências: 1) A ampliação da duração do transporte, o que implica um aumento na duração do risco e gera a necessidade de uma adaptação das condições das apólices. 2) Os atrasos e, portanto, a falta de fornecimento no lugar de destino, provocando aumento do valor das mercadorias (por ex., o preço do barril de petróleo Brent aumentou 46,73% durante os últimos doze meses). Isso acarreta que a exposição da companhia seguradora aumente na mesma proporção. 3) O aumento de mercadorias (e riquezas) nos portos gera a necessidade de alojá-las em depósitos cujas características e grau de adequação, em muitos casos, podem não ser computados pelas companhias seguradoras.
Tais circunstâncias não só afetam as apólices de seguro de mercadorias, mas também a cobertura de responsabilidade civil de portos, terminais e operadores de transportes, assegurados em mercados de seguro marítimo, é afetada pelo aumento da exposição por eventos como roubos e incêndios das mercadorias em custódia dos terminais.
Adicionalmente, não podemos esquecer que a falta de navios em quantidade suficiente para satisfazer à demanda de transporte tem como consequência o incremento no preço do frete marítimo. Um caso especialmente relevante é o setor dos porta-contêineres, mercado deficitário nos últimos anos (por ex., a quebra da Hangjin Shipping em setembro de 2018) e que na atualidade quintuplicou o preço de seus fretes, gerando grandes benefícios às companhias marítimas. Este aumento nos fretes ocasionou um grande acréscimo no valor dos navios, calculado não só com base ao aço e motores, mas também pela capacidade que tem de gerar benefícios. Isso se traduz em solicitações de grandes acréscimos nos atuais valores segurados dos navios (os subscritores manejam em seus cálculos uma margem de flutuação de 10%, mas hoje em dia as solicitações superam 20%), o que causa mais tensão sobre os seguradores.
Quanto ao efeito que a crise de fornecimento terá sobre a sinistralidade, ainda se desconhece e é cedo para atribuir valor ao efeito. No entanto, é possível falar de alguns fatores que podem provocar seu aumento:
- Diante da necessidade de incrementar o número de caminhões para o transporte da mercadoria acumulada, ficou patente a carência de motoristas profissionais. Não podemos esquecer que os sinistros mais comuns nesse tipo de transporte (acidentes e roubos) podem ser evitados por motoristas experientes.
- As invasões, colisões e incêndios em navios lamentavelmente se seguirão produzindo, mas o aumento nos valores segurados tanto das mercadorias como do navio fará com que o custo do sinistro a indenizar seja superior ao de um ano atrás.
- A crise provocou a necessidade de encontrar de forma rápida espaço de armazenamento adicional, cujas características e grau de adequação se desconheciam no momento da assinatura, elevando a incerteza sobre a idoneidade dos mesmos.
Definitivamente, podemos concluir que vivemos uma situação extraordinária de déficit de fornecimento e meios de transporte que, como dissemos, afeta diretamente os seguros de transportes. No entanto, embora haja a opinião comum de que esta situação é temporária e tende a se normalizar em um futuro próximo, é verdade que tem provocado mudanças nas políticas logísticas das empresas, criando, junto com as antigas linhas de abastecimento de longa distância, outras linhas mais próximas que minimizam o risco de uma futura falta de transporte e que, além disso, implicarão um menor custo ambiental. Quanto ao setor de seguros de transportes, a prática deixou claro que certas empresas têm dificuldade em encontrar seguradoras que se adaptem às circunstâncias de profundas mudanças e altas exposições que vivemos no curto prazo. Porém, o cliente que enxerga sua seguradora como um parceiro de longo prazo e que leva em consideração uma adequada solvência técnica e econômica poderá enfrentar com êxito tais circunstâncias extraordinárias.
José Manuel Castillo
Head of Global Marine
MAPFRE Global Risks