A região conta com uma das matrizes elétricas mais sustentáveis do mundo, com aproximadamente 85% de fontes renováveis, e planeja celebrar sua primeira licitação de eólica marinha em 2023. Analisamos seus projetos mais importantes e seu papel no mercado internacional junto a José Bernárdez, conselheiro-chefe no Escritório Econômico e Comercial da Embaixada da Espanha em Brasília.
A grande extensão geográfica do Brasil faz com que construir um sistema elétrico funcional e sustentável represente um grande desafio para as instituições. Se a este propósito acrescentarmos ambições renováveis, então uma extraordinária rede de transporte de energia seria necessária para aproveitar o grande esforço que se faz desde a geração. “A atual rede de transmissão elétrica conta com 140.000 quilômetros, e inclui linhas de corrente alternada em vários níveis de tensão e ligações de corrente contínua. Espera-se que seu crescimento aumente nos próximos anos, facilitando a integração das novas instalações renováveis”, afirma José Bernárdez, conselheiro-chefe no Escritório Econômico e Comercial da Espanha no Brasil.
De acordo com os dados da Agência Nacional de Energia Elétrica, 85% da matriz elétrica da região é de origem renovável. Da capacidade instalada de 180 GW, 58,1% é de origem hidrelétrica, 10,5% eólica, 8,6% de gás natural, 8,3% de biomassa, 4,9% de petróleo e combustíveis fósseis, 2,3% de energia solar fotovoltaica centralizada, 1,9% de carvão mineral e 1,1% de energia nuclear. “Prevê-se que esta capacidade instalada cresça até 2030 a uma taxa média anual de 3,5% para satisfazer às necessidades de particulares e empresas, sem que a matriz energética prevista experimente mudanças relevantes. Os mais importantes serão o aumento na participação do gás natural, cujo uso crescerá 4,9% por ano, e uma redução relativa dos derivados de petróleo como fonte de energia, cujo crescimento anual estimado se limitará a 1,6%, em favor dos biocombustíveis. O biocombustível que mais crescerá no período analisado é o biodiesel (5,8% anual)”, assegura o especialista.
Um robusto sistema energético
Como explica o conselheiro, o mercado brasileiro conta com 105 revendedoras, das quais 52 são concessionárias. Este segmento ainda tem um importante potencial de crescimento, devido às demandas da cidadania e ao tecido industrial, e está captando investimentos significativos. “O desenvolvimento do setor elétrico atraiu importantes grupos de origem espanhola, como o Redaio (grupo Rede Elétrica Espanhola), que entrou em 2019 com o gerenciamento de 1.500 quilômetros de linhas de transmissão e reforçou a participação em 2022 com a aquisição de novas infraestruturas. Também a Iberdrola, através de sua filial Neoenergía, é um dos principais operadores do mercado elétrico do Brasil, tanto em transmissão, com mais de 6000 quilômetros, quanto em distribuição”, expõe.
A envergadura desta matriz faz com que o país tenha que adequar seu sistema de armazenamento, com o objetivo de introduzir, no médio prazo, uma grande percentagem de geração variável derivada de fontes eólicas e solares. Estas infraestruturas permitirão mitigar os efeitos causados pela intermitência dessas fontes, assegurar a qualidade do fornecimento e cumprir seus objetivos de desenvolvimento sustentável nas áreas rurais, algumas delas em zonas remotas do norte do país. “Apesar disso, a disponibilidade e o uso de sistemas de provisão de energia é muito incipiente. A utilização de baterias de íons de lítio residenciais e comerciais é muito escassa devido a seu alto custo. Quanto ao armazenamento de hidrogênio em forma de gás comprimido, hidrogênio líquido, amoníaco líquido ou hidretos, estão previstos novos avanços no médio prazo, derivados das pesquisas”, adverte, assinalando que seu desenvolvimento requererá, portanto, projetos de I+D — tanto públicos quanto privados — que impulsionem a tecnologia e da correta regulamentação que incentive seu desenvolvimento.
Imersos na transição energética
Além do impulso renovável que sustenta a transição energética que presenciamos em escala mundial, José Bernárdez assinala que a mudança é complexa, não linear, e dificilmente disruptiva. “Os analistas propõem uma longa coexistência entre as fontes confiantes na matriz energética e as fontes tecnologicamente mais avançadas que um dia acabarão substituindo-as. No caso do Brasil, a transição se baseará no desenvolvimento da eletrificação — especialmente de origem renovável —, no uso de biocombustíveis e gás natural e no recurso ao armazenamento de energia renovável”, explica. Tudo isso em um contexto de maior eficiência devido, em parte, à digitalização.
Esta tecnificação afetará também a outros setores, como o de transporte e logística, onde as baterias poderiam desempenhar um papel relevante, mas que no curto prazo seguem competindo com combustíveis tradicionais e biocombustíveis. No longo prazo, se a comercialização for bem-sucedida, o hidrogênio seria usado nos veículos elétricos movidos a combustível. “A economia do hidrogênio pode ter um papel importante na transição energética do país. Em projetos de hidrogênio verde, gerado por eletrólise da água a partir de fontes renováveis, o Brasil é reconhecido como um grande ator internacional”, aponta.
Nos últimos anos, foram realizadas na região múltiplas iniciativas legislativas e planos de atuação do governo que favorecem esta transformação energética. Entre eles, destacam-se:
– A Política Nacional de Mudança Climática de 2009, que estabelece o compromisso de reduzir cerca de 40% as emissões de CO₂ previstas em 2020
– A Política Nacional de Biocombustíveis de 2017, dirigida a aumentar sua produção e participação na matriz de combustíveis
– A criação do denominado novo mercado do gás em 2018, que promove os investimentos em infraestrutura e o aumento de seu uso
– A modernização de seu setor elétrico, com diferentes iniciativas para melhorar seu marco legal e aumentar a concorrência, para que assim o mercado atribua corretamente custos e riscos entre os agentes.
Referência mundial em energia limpa
O Brasil é o terceiro país do mundo com maior capacidade instalada de energias renováveis e uma referência na escala mundial de produção limpa. Isto foi possível graças ao impulso das fontes hidroelétricas e aos biocombustíveis, e mais recentemente às energias solar e eólica. “Já na década de 1930 começaram a ser utilizados, no Brasil, painéis fotovoltaicos, enquanto no resto do mundo era ainda uma tecnologia pouco frequente. No século atual, a produção de energias limpas foi incentivada. Entre 2006 e 2013 a energia eólica cresceu 829%, o que permitiu que esta fonte cobrisse cerca de 3% da capacidade instalada, com 3700 MW”, expõe José Bernárdez.
Com respeito à sua distribuição, e apesar das previsões de demanda e produção, o especialista assegura que “a energia hidráulica verá reduzida sua capacidade de produção, alinhada com o interesse do governo brasileiro de mitigar o impacto futuro de novas crises hídricas”. O sistema foca na energia eólica, segunda maior fonte de geração do país, e na fotovoltaica, grande aposta da política energética para os próximos anos. “Apesar de supor unicamente 2,3% da matriz elétrica brasileira atual, ela se destaca como a fonte que mais cresceu proporcionalmente nos últimos 5 anos”, afirma. Em relação ao futuro, a promoção de novas fontes renováveis se centraliza em âmbitos mais inovadores, como o hidrogênio verde ou a energia eólica offshore.
Grandes apostas: hidrogênio e gás natural
“A pesquisa na produção de hidrogênio e em seus aplicativos industriais faz com que seja uma área de interesse em todos os países que abordam uma transição energética. O objetivo é que seu uso seja competitivo no custo, o que permitiria estendê-lo ao transporte, à geração e armazenamento de energia, à produção de fertilizantes refinados ou de biocombustíveis avançados como o óleo vegetal hidrogenado (HVO)”, explica o conselheiro.
Os líderes do setor estão trabalhando para atrair investidores para o desenvolvimento de projetos de hidrogênio verde através de associações público-privadas, de forma que assumam o financiamento e o gerenciamento destes projetos. “O Estado do Ceará é um dos mais ativos em promover estes projetos, ao contar já com doze protocolos de colaboração com empresas — entre as quais há presença espanhola — para desenvolver a produção de energia limpa, seguido pelo Estado da Bahia, que, em 2022, assinou um acordo com uma multinacional do setor para construir a que poderia ser a maior fábrica de hidrogênio verde no mundo”, aponta.
Quanto ao gás natural, estima-se que em 2031 haja um pico de produção próximo dos 136 milhões de m3/dia, o que poderia torná-lo líder do “novo mercado do gás”, um cenário especialmente marcado pela guerra da Ucrânia e as sanções à Rússia. “O gás natural, que contribui com 8,6% da matriz energética, tem como usuários particulares e a indústria. Neste último caso, a indústria termoelétrica e empresas petroquímicas e de fertilizantes. A rede nacional de gasodutos tem uma longitude total de pouco mais de 9400 quilômetros, que permite o transporte de gás de produção nacional ou importado através de gasodutos internacionais, ou em forma de GNL por terminais de regaseificação”, expõe. Longe de serem cifras definitivas, as dimensões do mercado aumentam de maneira progressiva. “Há importantes investimentos previstos nos próximos anos, como o centro de processamento de gás natural do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro e um novo gasoduto de 83,2 quilômetros no Ceará”, conclui.
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Jose Bernárdez, conselheiro-chefe do Escritório Econômico e Comercial da Embaixada da Espanha no Brasil, é economista de formação e pertence ao corpo de Técnicos Comerciais e Economistas do Estado desde 2000. Ao longo de sua carreira administrativa, atuou em diversos postos de responsabilidade no âmbito da regulação econômica, do comércio exterior e da internacionalização das empresas espanholas. Entre 2003 e 2008, foi Conselheiro Econômico e Comercial em Varsóvia (Polônia) e entre 2011 e 2016 desempenhou esse mesmo cargo na Embaixada da Espanha em Nairóbi (Quênia). Desde 2018 e até sua incorporação ao Escritório Econômico e Comercial de Brasília em 2021, foi diretor de regulação na Comissão Nacional dos Mercados e da Concorrência.
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