Entrevista com Isabel Rata García-Junceda, conselheira -chefe do Escritório Econômico e Comercial da Espanha em Brasilia.
A crise sanitária, causada pela pandemia de COVID-19, representou um desafio econômico a nível mundial. Isabel Rata, conselheira no Escritório Econômico e Comercial da Espanha em Brasília, comenta como enfrentaram no Brasil, analisa a projeção econômica para a região e sua abertura para novos investimentos estrangeiros.
1. Como profunda conhecedora da economia brasileira, poderia fazer uma introdução acerca dos setores mais relevantes do país?
O Brasil é um país continental, 17 vezes maior do que a Espanha, e sua quantidade de recursos naturais e de capital humano o tornam uma região quase única e cheia de oportunidades.
São inúmeros os setores que oferecem ótimas oportunidades, a partir do setor primário, que supõe 5,2% do PIB e que atualmente demonstra um desempenho extraordinário, transformando o Brasil no primeiro país exportador mundial de uma gama diversificada de produtos agrícolas e pecuários, como açúcar, café, soja, suco de laranja ou carne bovina e frango. E até de alimentos processados em sua indústria agroalimentar.
Por sua vez, a indústria representa cerca de 22% do PIB, com destaque para atividades de produção de máquinas, ferramentas e bens de consumo, automóveis e seus componentes, siderurgia, produção têxtil, indústria da mineração e produção energética, entre outras.
A maior parte da atividade econômica no Brasil se encontra concentrada no setor dos serviços, representando cerca de três quartos do PIB brasileiro. Sobressaem os serviços de tecnologias da informação e telecomunicações, os serviços financeiros, as atividades de seguros e o comércio.
Vale a pena salientar que as infraestruturas significam uma fonte de oportunidade específica. O governo brasileiro apostou pela melhoria e pela expansão de suas infraestruturas, como base para a recuperação econômica e o estabelecimento de um crescimento econômico sustentável, com melhoramento de produtividade e competitividade. Isto possibilita a existência de políticas públicas, como o Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), voltado à criação de colaborações público-privadas e à redução do setor público na atividade produtiva em favor do setor privado.
De fato, a atual política econômica do governo tem como centro brindar maior liberdade para o setor privado, abrir a economia brasileira e conseguir que o Brasil ocupe seu lugar entre as potências econômicas mundiais. Nesse sentido, destacam-se dois elementos que representam grandes oportunidades para empresas espanholas: o processo de adesão à OCDE que, além da integração no grupo de economias mais avançadas significará para o Brasil a harmonização de padrões de economias mais modernas, propiciando a decolagem da economia brasileira em um contexto de maior segurança e previsibilidade nas transações; e a assinatura de acordos de livre comércio com países ou organizações de enorme relevância mundial, salientando o assinado entre a União Europeia e o Mercosul, e que teve ao Brasil entre seus grandes propulsores.
2. E os de maior potencial para o futuro?
Se considerarmos fatores como a abundância de recursos naturais, uma demografia jovem e dinâmica, e sua posição estratégica como principal mercado da América Latina, é enorme o potencial de desenvolvimento do Brasil como país.
Em primeiro lugar, destaca-se o potencial de evolução da agroindústria brasileira, considerada cada vez mais como setor estratégico da economia tanto pela alta propensão exportadora quanto pela relevância como empregador em áreas rurais do país. A previsão é de que o país continue reforçando sua posição como um dos principais provedores de alimentos do mundo.
Assim mesmo, também há forte potencial de exportação de produtos minerais e na produção energética: gás natural, petróleo e, principalmente, energias renováveis. É preciso lembrar de que a matriz energética brasileira é uma das mais verdes do mundo.
Por sua vez, existe grande margem em áreas atualmente deficitárias, como no saneamento básico e na gestão dos recursos hídricos, ou em infraestruturas de transporte, construção civil e distribuição de energia, porque seu desenvolvimento passou a ser considerado prioridade na política de investimentos federais para melhorar a competitividade do país.
Finalmente, o setor dos serviços apresenta uma clara aposta do governo pela criação de cidades inteligentes e plataformas digitais, que permitam centralizar processos administrativos e mitigar a carga burocrática, considerada um dos principais componentes do denominado “custo Brasil”.
Além disso, o fato de possui uma ampla parcela de população jovem contribuiu para o processo de adaptação no uso de tecnologias e propostas inovadoras por parte das grandes empresas que operam no país, que apostaram pelas novas tecnologias em áreas como o mercado financeiro, seguros, vendas on-line e telecomunicações, em que se destacam os avanços rumo à criação de uma rede 5G nacional.
3. Na sua opinião, quais setores do mercado brasileiro ficaram mais afetados pela crise da pandemia?
Os efeitos da crise causada pela pandemia foram semelhantes aos de outros países no mundo, com impacto direto em setores que foram forçados a interromper suas operações perante as medidas de isolamento social, como o setor do transporte aéreo de passageiros, as atividades econômicas relacionadas ao turismo, o setor do lazer, a hotelaria e o comércio.
4. Recentemente, notícias sobre o denominado Plano Pró-Brasil, proposto como dinamizador da economia após a crise e que representa um investimento público de 5.500 milhões de dólares em projetos de infraestruturas, foram publicadas. Que setores serão prioritários e quais os projetos mais relevantes desse investimento?
O plano Pró-Brasil foi incorporado em uma série de ações categorizadas em dois eixos principais, designados pelas duas palavras presentes na bandeira brasileira: ordem e progresso.
No eixo referente à “ordem”, incluem-se medidas estruturais e estratégicas, cujo objetivo é melhorar as bases e o clima de investimento no país, como o quadro normativo, o incremento da segurança jurídica e da produtividade, a contribuição para a criação de um melhor ambiente empresarial e a mitigação dos impactos socioeconômicos da crise. Já no eixo “progresso”, são apresentadas medidas relacionadas ao investimento, como as principais obras públicas e as opções de colaboração público-privada.
Respeito do alcance, o programa é dividido em cinco áreas: Infraestrutura (transporte e logística; energia e mineração; telecomunicações e desenvolvimento regional e cidades); Desenvolvimento Produtivo (indústria; agronegócio; serviços e turismo); Capital Humano (cidadania; capacitação; saúde e defesa, inteligência, segurança pública e controle da corrupção); Inovação e Tecnologia (cadeias digitais; indústria criativa e ciência) e Habilitação (finanças e impostos; legislação e controle; meio ambiente; institucional e internacional, e valores e tradições).
A previsão é de que o portfólio de projetos englobados no Plano Pró-Brasil seja definido entre agosto e outubro, sendo neste último mês que será estabelecido um cronograma para priorização de projetos com retorno mais rápido para a economia e a criação de empregos.
5. Além do Plano Pró-Brasil, há outros planos/medidas previstos para a recuperação da atividade econômica e comercial nesse país?
O governo brasileiro anunciou a intenção de continuar com a agenda de medidas pró-mercado e de estímulo econômico, já divulgadas antes da pandemia, além de incluir novas medidas de emergência para enfrentar a crise económica.
Além de continuar com os projetos incluídos no PPI, outros ministérios, como o da Infraestrutura ou o do Desenvolvimento Regional, se encontram trabalhando na apresentação de projetos para o acesso do setor privado à atividade produtiva do país, com forte impacto nas bases do crescimento econômico sustentável.
“A administração reforça a aposta espanhola pelo Brasil, por considerá-lo um dos países que contam com Atuação Setorial Estratégica (PASE), delimitada pela Secretaria de Estado do Comércio do Ministério de Indústria, Comércio e Turismo, no âmbito da Estratégia para a Internacionalização das Empresas Espanholas 2017-2027.”
Além disso, o governo tenciona continuar com as medidas de simplificação, desburocratização e desregulação propostas pelo Ministro da Economia, Paulo Guedes, no início de seu mandato, continuando com a agenda iniciada pela Lei da Liberdade Econômica, que foi interrompida pela atual situação de emergência causada pela pandemia de COVID-19. Contudo, o governo demonstra o firme propósito de continuar com a implementação de medidas para diminuir a carga tributária na área trabalhista e estimular a criação de empregos; para combater a pobreza, simplificar o contexto regulatório dos setores chave para a atração de investimentos privados ou alavancar o mercado do crédito.
6. No âmbito das grandes corporações, que setor centraliza os grandes investimentos estrangeiros?
Aproximadamente metade dos investimentos estrangeiros diretos dirigidos ao Brasil estão concentrados no setor dos serviços, especialmente financeiros, seguidos pelo comércio e telecomunicações, embora em menor proporção. Já no setor industrial, destacam-se os investimentos nos setores de infraestrutura para produção e distribuição elétrica, extração do petróleo e gás natural, produtos químicos e agroindústria. No setor primário, os investimentos se concentram na extração de minerais, produção agrícola e pecuária.
7. Quais são os principais requisitos que ainda devem cumprir essas grandes corporações para aspirar ao sucesso nas licitações nacionais e internacionais no Brasil?
Empresas estrangeiras podem participar em processos de licitação através de diferentes tipos de participação, seja em forma indireta -mediante fornecimento de produtos e serviços para uma empresa brasileira participante em licitação ou via consórcio com empresa local- ou de forma direta, sendo essencial que essa empresa conte com um representante legal no país com poderes expressos, que possa receber intimações e agir administrativa e judicialmente em seu nome. É preciso salientar que existe um novo regulamento, em fase de aprovação, que eliminaria a necessidade de representante legal local para licitar, mas que foi adiado como consequência da pandemia.
Ainda, é destacável a existência de uma nova Lei de Licitações (PL 1292/95), que também está em fase de aprovação e que, entre outras novidades, criará uma nova plataforma on-line para licitações que centralizará os processos de chamada, a fim de padronizar as normas de participação e criar maior transparência nos processos de adjudicação. Esta nova lei conservará a margem de preferência por produtos e serviços nacionais, sempre que a oferta da empresa brasileira não supere, em mais de 25%, o preço da opção estrangeira.
8. Qual é a participação atual do investimento espanhol no Brasil e em que setores se evidencia maior presença?
As relações bilaterais econômicas entre a Espanha e o Brasil têm sua base fundamental no investimento. As empresas espanholas iniciaram seu desembarque no gigante da América do Sul no contexto da primeira onda de privatizações em meados e final dos anos 90, e aqui continuam após 25 anos, perfeitamente integradas e contribuindo para o crescimento econômico e a geração de empregos e riqueza do país. Não é sem motivo que o Brasil está posicionado como quarto destino para investimento espanhol no mundo, depois dos Estados Unidos e do Reino Unido, acumulando um investimento em 2018 de mais de 48.000 milhões de euros e gerando mais de 180.000 postos de trabalho no país. É preciso destacar que cerca de dois terços das empresas do IBEX 35 têm representação no Brasil e que sua posição de investimento denota uma evidente aposta pelo país e por um marcado perfil de permanência.
A presença das grandes empresas espanholas abrange grande variedade de setores, principalmente telecomunicações, seguidos de serviços financeiros e seguros -como a MAPFRE-, energia e infraestruturas.
Além disso, a administração reforça a aposta espanhola pelo Brasil, por considerá-lo um dos países que contam com Atuação Setorial Estratégica (PASE), delimitada pela Secretaria de Estado do Comércio do Ministério de Indústria, Comércio e Turismo, no âmbito da Estratégia para a Internacionalização das Empresas Espanholas 2017-2027.
9. Na sua opinião, existe um grau de maturidade suficiente nas grandes empresas brasileiras respeito de contar com um seguro adequado para suas necessidades?
As multinacionais brasileiras e as multinacionais instaladas no Brasil possuem um elevado nível de maturidade. São empresas de primeiro nível que, como não pode ser de outra maneira, precisam de um mercado de seguros adequado e profundo para operar. Não é possível entender a atividade econômica sem o mercado de seguros, da mesma forma que não pode ser entendido sem o setor financeiro. E o Brasil conta com esse mercado, onde a presença espanhola está representada por uma de nossas maiores operadoras, como é a MAPFRE.
10. Em função do cenário atual, o Escritório Econômico e Comercial da Espanha em Brasília manterá o mesmo dinamismo na promoção das atividades comerciais?
Completamente. É precisamente nos momentos de incerteza que nosso trabalho assume maior importância. Nossa equipe no Brasil está preparada para assessorar empresas espanholas em qualquer área relacionada à internacionalização no Brasil.
Diante da situação atual, o ICEX adaptou alguns serviços personalizados para oferecê-los de maneira virtual, como é o caso da agenda de reuniões virtuais, uma ferramenta que permite estabelecer uma relação profissional com empresas brasileiras de interesse para nossos clientes, seja na Espanha ou aquelas com presença no mercado, que desejam explorar novas áreas de atuação.
Da mesma maneira, os dois Escritórios Econômicos e Comerciais da Espanha no Brasil (em Brasília e São Paulo) estão organizando seminários on-line para abordar temas de atualidade, como os efeitos da pandemia na economia, ou um seminário conjunto com o Ministério da Infraestrutura sobre futuros projetos e licitações, em que as empresas participantes terão a oportunidade de realizar consultas individualizadas às autoridades brasileiras. Também continuamos trabalhando através de reuniões virtuais com empresas que nos contatam e precisam de nosso apoio. As ferramentas disponíveis atualmente estão sendo nossas grandes aliadas.
11. E, para finalizar, de sua perspectiva, qual foi a principal lição que deixou a crise desencadeada pela pandemia nas relações comerciais internacionais?
Acredito que este período evidenciou, em primeiro lugar, a necessidade de repensar as relações bilaterais e multilaterais de igual a igual, reforçando a coordenação internacional para responder juntos a uma crise sem precedentes, como a que atualmente enfrentamos de tipo sanitário. Esta experiência deve nos alertar para desenvolvermos planos de atuação futuros, que possibilitem estarmos preparados perante potenciais novos surtos desta pandemia, em particular, e de outras formas de crise que possam nos atingir no médio prazo. Nesse sentido, o mercado de seguros deve exercer um papel chave para tentar reduzir a incerteza originada por estas situações de crise.
Isabel Rata García-Junceda (Madri, 21 de julho de 1976), é desde 2016 conselheira-chefe no Escritório Econômico e Comercial da Espanha em Brasília. Formada em Economia pela Universidade Autônoma de Madri, integra o Corpo Superior de Técnicos Comerciais e Economistas do Estado (2006), bem como o Corpo de Diplomados Comerciais do Estado (2004). Também, possui um Mestrado em Relações Internacionais Ibero-Americanas e Mestrado em Direção Pública