No passado dia 3 de outubro, realizou-se em Lisboa o II Encontro MAPFRE Global Risks com os principais corretores de seguros nacionais e internacionais, no qual foi abordada a perspetiva macroeconómica de 2022 e 2023 e os seus riscos, mas também os principais riscos no setor dos seguros. Além dos principais responsáveis pela Unidade Global Risks, o convidado de honra foi António Nogueira Leite, economista e antigo Secretário do Tesouro e Finanças que, generosamente, nos concedeu uma entrevista.
Vivemos atualmente uma situação realmente difícil: uma crise económica bastante profunda, logo após uma pandemia, que se complica com os problemas causados pela guerra na Ucrânia. Com este cenário, que perspetivas económicas a médio e longo prazo podemos esperar para a Europa? Como pode afetar a atividade seguradora?
No curto prazo esta sucessão de crises está e continuará a ter um impacto muito relevante na Europa. A inflação que se vinha constatando em função dos estrangulamentos logísticos e em alguns mercados após a retoma das economias no fim da fase mais aguda da pandemia, teve uma aceleração relevante após o início da guerra, sobretudo em função da subida dos preços dos combustíveis e energia. Uma vez que a generalidade dos processos produtivos depende da energia, assim como toda a cadeia logística, a subida de preços atrás referida estendeu-se a toda a economia, ampliando os efeitos que vinham desde 2021. Adicionalmente, a escassez da oferta de gás natural, devido à excessiva dependência de um dos beligerantes, acentuou estes efeitos. A inflação, ainda que com origem em choques de oferta, levou à alteração da política monetária, com a subida das taxas de referência por vários bancos centrais, incluindo o BCE. Esta mudança de política, com efeitos na atividade das empresas e das famílias, acresce à degradação de expectativas em função da guerra, levando a um arrefecimento importante da atividade, que deverá ter expressão relevante em 2023.
Não existem receitas económicas mágicas para lidar com a situação que estamos a viver. Mas que reformas podiam ser implementadas a nível global para tornar esta situação mais fácil para todos?
No caso europeu o que resulta mais claro é a necessidade de reduzir a dependência energética da Rússia, procurando novos fornecedores—o que está a acontecer—e acelerando o esforço de descarbonização das economias e da produção energética. Aliás, esta resposta está em linha com o programa em curso da UE de resposta à Covid em que a descarbonização é um dos pilares essenciais do esforço de investimento que os países estão a fazer a partir do programa conjunto de resposta aos efeitos da pandemia. Já no passado, parte da resposta à última crise petrolífera, em 1979/80, passou pela redução da dependência face à produção petrolífera do médio oriente e golfo Pérsico.
A inflação em Portugal, tal como acontece nos restantes países da União Europeia, está a atingir valores que já não se viam há décadas. Na sua opinião, que medidas são necessárias para fazer face a esta situação?
Estamos a atingir valores próximo dos 10%. As autoridades portuguesas estão muito otimistas numa baixa rápida da inflação em 2023, refletindo essa visão nas medidas previstas para o próximo ano, mas eu penso que, para já, deveremos ser cautelosos. Na verdade, há um contínuo de cenários diferenciados para os próximos tempos com probabilidade de ocorrência não negligenciável. Seja pela incerteza própria da guerra, pela dimensão dos impactos das armas económicas utilizadas por beligerantes e outros participantes numa guerra híbrida ou pela capacidade de os instrumentos de política monetária e orçamental controlarem a inflação nas principais economias na medida e na duração que hoje se antecipam. Neste contexto, a previsão económica de curto e médio prazo é hoje um exercício arriscadíssimo. E a robustez dos seus resultados deve ser encarada em conformidade.
Na verdade, estamos perante uma crise síncrona nas economias mais relevantes e o sentido das políticas de estabilização é o adequado, em larga medida, com o carater mais restritivo da política monetária como já referi. Porém, vale a pena recorrer ao que aos ensinamentos do passado (das crises petrolíferas dos anos 73/74 e 79/80) e perceber que, quando as expectativas de resolução inicial das crises são superadas pela dimensão que estas efetivamente venham a ter, e novas medidas são necessárias, os custos de ajustamentos poderão vir a ser substancialmente maiores do que inicialmente antecipado. Tal significa que devemos esperar pelo melhor cenário, mas devemos também estar preparados para um cenário mais complexo e longo, com necessidade de acorrer aos mais desprotegidos num contexto em que a política orçamental não aumente o que a monetária vai tentar diminuir: a inflação.
O risco de recessão paira atualmente sobre as economias ocidentais. Seremos capazes de o contornar?
Uma recessão em 2023 não pode ser excluída neste momento dada a incerteza das razões subjacentes à crise a que se junta a incerteza quanto ao impacto no crescimento dos instrumentos usados para combater a inflação, nomeadamente o caráter restritivo da política monetária. Nalguns países, como Portugal, as autoridades mantêm uma visão otimista em linha com as declarações iniciais quanto à inflação e ao facto de considerarem que é importada, essencialmente. Pessoalmente, não comungo de uma visão tao otimista. Penso serem mais prudentes as declarações recentes de Philip Lane e Isabel Schnabel, de que é preciso ir olhando para a informação quantitativa que vamos obtendo e afinar a resposta à crise em função da evolução dos dados. Já há uma importante componente da inflação que é endógena e resultante dos efeitos em cadeia despoletados, restando saber: como reage à subida de taxas e como é que essa subida afeta os componentes reais da economia. Teremos de seguir a situação com acrescida atenção nos próximos meses, esperando o melhor, mas preparando-nos para a eventualidade de algumas dificuldades hoje inesperadas.
O que pode ser feito para evitar uma nova crise de abastecimento como a que vivemos há alguns meses?
A Europa está a trabalhar em reduzir a dependência energética, muito mais debilitante no centro do continente do que na Península. Só que a crise anterior mostrou-nos que há riscos de abastecimento de muitos produtos e matérias primas para além da energia. Caberá às empresas uma reflexão seguida de ação sobre as debilidades que enfrentam pela deslocalização crescente até 2020 das suas cadeias de valor e qual a melhor forma de se manterem globalmente competitivas tendo em atenção que não deverão manter-se tao expostas aos riscos de catástrofes naturais, como a pandemia, ou geopolíticos, como a invasão russa da Ucrânia.
“Tal significa que devemos esperar pelo melhor cenário, mas devemos também estar preparados para um cenário mais complexo e longo”
A subida das taxas pode fazer com que haja derrapagens de custos no financiamento de grandes infraestruturas. Que consequências podem surgir daqui?
A subida de taxas pode afetar o financiamento, agora mais caro. Penso que igualmente grave é a subida dos custos de muitas matérias-primas, bens intermédios, custos de transporte e energia, com impacto nos custos de construção e instalação. Acredito que muitos careçam de reprogramação financeira, podendo no limite, sofrer atrasos consideráveis, para além dos sobrecustos inevitáveis com o que já sabemos hoje.
Os preços da energia têm estado a subir de forma considerável há vários meses. O que podemos esperar a curto e médio prazo?
A curto prazo estamos muito dependentes das circunstâncias com que partimos para esta crise, do comportamento de muitos agentes e países para além da Rússia, como por exemplo a decisão recente da Opep de cortar produção e a lentidão da adaptação das infraestruturas e operadores energéticos. A médio prazo conto ver uma Europa menos dependente, mais descarbonizada e uma correção dos preços mais em linha com os custos de produção e refletindo uma menor escassez.
Ele nasceu em 1962. É formado em Economia pela Universidade Católica Portuguesa, tem mestrado e doutorado em Economia pela Universidade de Illinois. Entre 1988 e 1996, foi consultor de várias instituições nacionais e internacionais, entre as quais o Banco de Portugal, a OCDE e a Comissão Europeia.
Em 1999, foi nomeado Presidente do Conselho de Administração da Bolsa de Valores de Lisboa e vogal da Comissão Executiva da Associação da Bolsa Ibero-Americana. De outubro de 1999 a agosto de 2000, foi Secretário do Departamento do Tesouro e Finanças e vice-governador do Banco Europeu de Investimentos. Assumiu o cargo no Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento e no Fundo Monetário Internacional e foi vogal do Conselho Econômico e Financeiro da União Europeia. Exerceu ainda as funções de vice-presidente do Conselho Consultivo do Banif (Banco de Investimentos S.A.), presidente do Conselho Geral e supervisor da OPEX, S.A.
António Nogueira Leite é, desde 2000, vogal do Conselho Consultivo da Associação Portuguesa para o Desenvolvimento das Comunicações.
Desde 2008, ele é diretor não executivo do Conselho de Administração da EDPR e vogal para transações com partes relacionadas.