Entrevista com José Joaquín Hernández Brito, diretor da Plataforma Oceânica das Ilhas Canárias
Os oceanos se apresentam como um recurso fundamental para o desenvolvimento de setores emergentes e inovadores, como o energético ou biotecnológico, que poderão atuar como motores de uma economia sustentável e lucrativa. Em 2007, a Plataforma Oceânica das Ilhas Canárias foi criada para construir, equipar e operar um conjunto de infraestruturas de pesquisa no campo da ciência e da tecnologia, com o objetivo de impulsionar um uso responsável e sustentável dos recursos marinhos. Seu diretor, José Joaquín Hernández Brito, fala sobre o enorme potencial da denominada “economia azul”.
1. Pode nos comentar sobre o trabalho e os objetivos da instituição?
O objetivo básico da PLOCAN é acelerar o desenvolvimento científico de excelência e a maturidade das tecnologias, para um uso responsável e sustentável do ambiente marinho. Nosso compromisso está na aplicação do conhecimento e na geração de valor social e econômico, possibilitando ecossistemas inovadores em torno dos grandes desafios que enfrentamos, tais como a transição ecológica, a segurança alimentar ou a conservação e saúde dos oceanos. Na nossa plataforma impulsionamos o conhecimento e as tecnologias demandadas pela economia azul para liberar o seu potencial, contribuindo para a diversificação econômica e o desenvolvimento de novas indústrias alinhadas aos ODS das Nações Unidas e à década dos oceanos.
A instituição busca catalisar a concentração de talento e capacidades em redor de grandes desafios científicos e tecnológicos, como a extração de energia renovável com custos competitivos para substituir combustíveis fósseis em condições de mercado. As energias renováveis dos oceanos se tornarão a peça fundamental na transição energética e na descarbonização.
Além da energia, a PLOCAN faz uma aposta pela produção sustentável de alimentos longe das costas, integrando as atividades aquícolas com a geração de energia. Propõe um uso mais eficiente do espaço marinho incluindo atividades compatíveis, aproveitando sinergias e melhorando a observação do ambiente, ao contar com dados e modelos confiáveis que permitam uma gestão baseada no conhecimento. Além disso, agiliza a transferência de tecnologia entre disciplinas e setores que possam fornecer valor à exploração e gestão do ambiente marinho, permitindo a colaboração público-privada e a adaptação dos regulamentos para adequação às novas tecnologias e oportunidades de negócio.
2. A PLOCAN participa na reivindicação do mar e dos oceanos como motor econômico fundamental. Quais são os setores que participam mais ativamente nessa “economia azul”?
A economia azul inclui o aproveitamento dos recursos marinhos, englobando às energias renováveis, à produção de alimentos e compostos de interesse farmacológico, ao transporte marítimo, ao lazer e, em geral, qualquer atividade realizada no ambiente costeiro e oceânico. Seu potencial é enorme e apenas está desenvolvido. No entanto, agora se torna urgente gerenciar de maneira responsável o ambiente marinho devido a vários motivos críticos. Por um lado, o ambiente controla as condições do suporte à vida do planeta tal e como o conhecemos agora. Os impactos dos seres humanos no planeta estão ultrapassando a capacidade que o ambiente natural possui de manter seu equilíbrio atual. Devemos conhecer o seu estado, a direção em que evolui e mitigar mudanças que possam ser prejudiciais. Para isso é preciso um esforço coordenado internacional e o desenvolvimento de novas tecnologias e modelos de negócio sustentáveis.
Por outro lado, nos encontramos diante de enormes oportunidades para o aproveitamento de recursos renováveis, substituindo práticas insustentáveis que prejudicam a saúde dos oceanos por uma gestão do meio que preserve suas capacidades e os serviços que o ecossistema oferece. Torna-se chave conhecer e avaliar o capital natural dos mares e oceanos, e gerenciá-lo de forma inteligente, preservando suas capacidades para as gerações vindouras.
3. Com quais infraestruturas conta e qual é a sua missão?
A PLOCAN conta com um banco de ensaios, uma plataforma offshore, uma frota de plataformas de observação, uma base em terra e capacidades para processamento de dados.
Os trabalhos são efetuados tanto em ambientes costeiros quanto no oceano aberto. Ainda, há pouco conhecimento dos oceanos e, por esse motivo, o desafio “da década dos oceanos” está em fornecer conhecimento profundo para gerenciá-lo de maneira sustentável enquanto for possível, antes de que as mudanças afetem equilíbrios que não possam ser revertidos posteriormente ou que aconteça o desaparecimento de espécies e ecossistemas essenciais para a biodiversidade ou a manutenção da saúde dos oceanos.
Os próximos anos serão realmente emocionantes pela quantidade de dados que produzirão as tecnologias de observação. Estimamos que só em 2018 foram gerados mais dados de observação do ambiente marinho que em todo o século XX, consequência do desenvolvimento tecnológico dos sensores, a disposição de drones, marcadores em plataformas animais ou satélites, entre outros. Tudo isso deriva em novas formas de gestão de dados, modelos cada vez mais sofisticados e precisos, aplicação de tecnologias de inteligência artificial, disposição de modelos virtuais que possam fornecer simulações e relatórios de grande utilidade para a gestão responsável pelo ambiente marinho.
4. Contam com uma instalação destacada: um banco de ensaios de 23 km2 e profundidades de 600 metros. Quais são as atividades sustentadas e como acontece sua coordenação?
O banco de ensaios serve para experimentar qualquer tipo de tecnologia e conceitos científicos em condições representativas do ambiente marinho, para que pesquisadores e desenvolvedores tecnológicos testem seus dispositivos e aprendam a partir das interações com o ambiente real. A região conta com uma série de posições para o ensaio de geradores eólicos fixos no fundo e flutuantes. Além disso, há áreas destinadas à aquicultura ou à instalação de dispositivos para o aproveitamento das ondas. Também existem espaços de uso multifuncional.
O planejamento foi realizado para possibilitar a integração de diferentes atividades de maneira simultânea, oferecendo aos usuários condições ideais para a instalação de seus equipamentos com grande variabilidade de condições. Os usuários devem respeitar um conjunto de protocolos comuns para garantir a segurança e a integridade das ações de cada um, sem sofrer efeitos ou influências indesejadas. Existe toda uma série de protocolos que certificam a segurança das operações, o controle das atividades e o cumprimento dos requerimentos técnicos e dos regulamentos para a integração da energia, gestão da informação ou produção de alimentos. Um dos elementos principais ao qual dedicamos nossa atenção é a integração de atividades emergentes e tradicionais. Assim, foi possível integrar atividades pesqueiras nas áreas de uso eólico.
5. Quais são os projetos mais importantes que estão sendo realizados neste momento?
Na atualidade, a PLOCAN desenvolve mais de 40 projetos internacionais de grande relevância; porém, gostaria de destacar aqueles que levaram ao desenvolvimento do primeiro aerogerador offshore conectado e alimentado com energia eólica marinha. Trata-se do projeto ELICAN, liderado pela empresa espanhola ESTEYCO, que abrange um sistema telescópico construído em concreto de grande potencial.
Outros projetos nessa linha, como FLOTANT ou MUSICA, evoluem as tecnologias rumo ao desenvolvimento da energia eólica flutuante em águas rasas, campo de especial interesse para as Ilhas Canárias e que tem a participação de grande número de empresas espanholas e europeias. Também gostaria de salientar outros projetos liderados por empresas espanholas nessa área, como PIVOTBUOY, com um conceito muito novo para a redução de custos e que será ensaiado no final de 2020. Na mesma linha de ensaios, em 2019 ENEROCEAN realizou um protótipo de eólica flutuante com dois aerogeradores montados no mesmo sistema de flutuação. Outro plano destacável nessa área é DESAL+, que pesquisa tecnologias emergentes para a utilização de energias renováveis e a economia circular na dessalinização.
Na área de observação, sublinharia os projetos que tencionam diminuir os custos de observação com a utilização de novos sensores, como o caso de JONAS, JERICO ou NEXOS. Eles permitiram o desenvolvimento de novos sistemas para a detecção de poluição no ambiente marinho, como plásticos, mas também outros menos evidentes, como a poluição sonora. Nessa linha, também trabalhamos com vários consórcios internacionais, como no projeto GROOMII, para a melhoria dos drones submarinos, integrando novos sensores, otimizando seus requerimentos energéticos ou seus sistemas de pilotagem automatizada.
Ainda, a PLOCAN participa de projetos estratégicos para a coordenação de atividades no espaço Atlântico, como o projeto AORA e AANCHOR, que promovem a implementação das Iniciativas de Pesquisa e Inovação do Atlântico Norte (declaração de Galway) e do Atlântico Sul (declaração de Belém), assinada pela UE e os países costeiros, para pesquisa e cooperação em inovação dentro da bacia atlântica, a partir da Antártida ao Ártico.
6. Pode falar sobre a manutenção de uma infraestrutura offshore dessas dimensões?
A manutenção deste tipo de infraestruturas é complexa devido à ação contínua do mar, que em certos extremos pode se tornar especialmente estressante para as instalações. Assim mesmo, os materiais também estão sujeitos a processos de erosão, corrosão ou crescimento biológico de organismos especialmente graves e caros. Por isso, a manutenção contínua é chave e também cara. Qualquer operação que em terra pode ser simples, como levantamento de pesos, transporte de equipamento, materiais ou pessoas, dificulta-se no ambiente marinho.
Além disso, desejaria mencionar as condições de segurança, aspecto essencial que pode afetar a integridade das pessoas. Por isso, os protocolos que seguimos na matéria são especialmente rigorosos, para evitar acidentes e situações de risco para as pessoas.
7. Também contam com uma importante frota de veículos e instrumentos submarinos que oferece suporte técnico e logístico a sua atividade. Qual é a capacidade? Quais são os riscos operacionais que suportam?
Os veículos que possuímos, especialmente os planadores subaquáticos, têm autonomia suficiente para permanecer na água durante meses e, segundo o número de sensores e a frequência das medições, podem percorrer distâncias de vários milhares de quilômetros. A evolução desses veículos foi surpreendente nos últimos anos, reduzindo o consumo de energia e aumentando a autonomia. Continuam enfrentando problemas de fixação de organismos durante muitos meses, o que dificulta seu deslocamento no ambiente.
Os riscos operacionais que suportam derivam das próprias características do meio, em que a fixação de organismos, a interação com embarcações e animais pode, às vezes, originar perdas ou avarias nos equipamentos. Também exigem vigilância contínua na pilotagem, porque embora algumas missões possam ser realizadas automaticamente, é frequente a necessidade de tomar decisões em que a experiência do piloto é crítica.
8. Estão muito vinculados ao setor energético e até contam com uma rede marinha inteligente, que oferece suporte a seus experimentos e ensaios. Como funciona e em que consiste?
A rede inteligente para gestão da energia é essencial na integração de diferentes dispositivos de geração renováveis, sem que sejam afetados por eventos que possam acontecer em outros equipamentos. Desta forma, a parada ou desconexão de um equipamento não causa problemas para outros. O sistema também regula o consumo de forma inteligente, carregando baterias ou sistemas que possam consumir energia segundo a necessidade ou o estado de atividade da plataforma.
Essas redes inteligentes serão cada vez mais frequentes na gestão tanto da produção quanto do consumo ou derivação da eletricidade à rede de transporte ou distribuição. Na atualidade, a implementação está sendo concluída e, quando for finalizada, também servirá para economizar o consumo elétrico e na pesquisa da integração de vetores energéticos, como a água, o hidrogênio e o amoníaco.
9. Falemos do setor. Na sua opinião, que evolução experimentaram as energias dos oceanos?
As energias dos oceanos evoluíram em diferente velocidade. A eólica offshore, assim como a solar em terra, progrediu no sentido de tecnologia e custo a um ritmo acelerado, até mais rápido do previsto há poucas décadas. Tudo isso foi impulsionado pelo ingresso de investidores, a reciclagem de conhecimentos e logísticas do setor do Petróleo e Gás, bem como pelo impulso institucional e o financiamento da inovação e das tecnologias realizados por países e empresas privadas. Também evoluíram rapidamente o tamanho e o potencial das turbinas, em que já são normais potências superiores a 10MW, questão que há uma década era só especulação. Nesta década, o desafio será a eólica flutuante em águas rasas, que busca reduzir custos para concorrer em preço com a geração em águas superficiais.
A energia das ondas, apesar do investimento e das expectativas criadas no final do século passado, não progrediu com a mesma velocidade na diminuição dos custos e no desenvolvimento de estruturas que resistam à ação do mar nos tempos necessários para sua amortização. As grandes tempestades e os eventos extremos afetam de maneira grave esses dispositivos incrementando os custos. No entanto, espera-se que nos próximos anos a energia das ondas também possa contribuir para o mix energético em territórios isolados ou remotos, a alimentação de estruturas e dispositivos no ambiente marinho como a aquicultura, os veículos não tripulados ou situações de emergência, entre outras.
10. Pode nos falar sobre a perspectiva de desenvolvimento dessas energias na América Latina e nas áreas com maior potencial dessa região?
A América Latina tem enormes possibilidades. Países como o Brasil, Argentina, México ou Chile possuem regiões com enorme potencial eólico. A modo de exemplo, o potencial elétrico em alto mar no Brasil é superior a 700 GW, só em profundidades superficiais (até 50 metros) e com velocidades médias de vento superiores a 7m/s a 100 metros de altura. É evidente que, quando as tecnologias da eólica flutuante sejam utilizadas, por possibilitar instalações em profundidades muito maiores, este número se multiplicará várias vezes (7,2TW na área exclusiva). Nos próximos anos, esse potencial teórico evoluirá com o desenvolvimento tecnológico.
A Argentina é outro país com enorme potencial para instalações fixas em águas superficiais (superior a 550 GW) e para eólica flutuante (superior a 1,2TW).
11. Quais são os desafios que atualmente enfrenta o setor a nível internacional? Quais acredita que serão os próximos marcos na evolução da energia offshore?
O setor enfrenta um desafio tecnológico fundamental: reduzir os custos da eólica flutuante a preços competitivos, não somente com o petróleo, mas respeito de outras energias renováveis e com a eólica na área terrestre. Os próximos anos serão de intensa concorrência internacional rumo à convergência tecnológica, aos designs mais eficientes, com vantagens logísticas, plataformas multipropósito, novos sistemas de acumulação e vetores energéticos para exportar a energia à terra e utilizá-la em alto mar. As Ilhas Canárias tem uma enorme oportunidade de participar nesse processo, especialmente como demonstrador e área de ensaio de novas tecnologias e modelos de negócio para a geração em sistemas isolados. Contar com grandes quantidades de energia de baixo preço no ambiente local mudará os atuais paradigmas, desvinculando o crescimento econômico das emissões de dióxido de carbono e outros gases poluentes.
Olhando para o futuro, chegará o dia em que nossos netos nos perguntem preocupados por que queimávamos carvão e petróleo para produzir energia, tal e como agora pensamos sobre as épocas em que a iluminação era feita com candeias e lâmpadas de óleo.
Colaborou neste artigo…
José Joaquín Hernández Brito é Doutor em Ciências Químicas (1986) pela Universidade da Laguna e, desde 1983, professor da Faculdade de Ciências do Mar da Universidade de Las Palmas de Gran Canaria. De 2009 a 2018, ano de sua incorporação a AIR CENTRE, foi gerente da ICTS PLOCAN.
Foi pesquisador em ciências marinhas, diretor de 5 teses de doutorado, responsável por mais de 30 projetos nacionais e internacionais, autor de mais de 60 publicações em revistas científicas, comunicações para congressos internacionais e divulgação científica multimídia.