O setor de gás na Europa observa o Leste, muito dependente do impacto da guerra da Ucrânia sobre a garantia do fornecimento de energia e seus custos. Nesse contexto, e desde que começou o conflito, a Associação Espanhola do Gás está trabalhando com administrações nacionais e internacionais para identificar riscos e construir soluções a curto, médio e longo prazo. Seu presidente, Joan Batalha, fala do papel que a Espanha pode desempenhar nessa delicada conjuntura geopolítica.
Como a guerra da Ucrânia está afetando, ou pode afetar, o setor de gás na Europa? Que impacto tem sobre a Espanha?
O conflito na Ucrânia provocou elevada volatilidade nos preços das matérias-primas de energia e colocou em pauta a relevância da garantia do fornecimento e a importância da diversificação de fontes de abastecimento, bem como do aproveitamento de alternativas energéticas limpas, alinhadas aos objetivos de descarbonização da União Europeia. Além disso, devemos considerar a recente resolução do Parlamento Europeu que solicita o embargo total das importações de energia da Rússia.
A Comissão Europeia menciona em seu plano REPower EU (para reduzir sua dependência do gás russo) o impulso à produção de biometano como uma das principais medidas para se obter novas fontes de energia e compromete-se a dobrar o objetivo proposto no pacote legislativo Fit For 55 para atingir uma produção de 35 bilhões de metros cúbicos ao ano em 2030. O sistema de gás na Espanha já está preparado para transportar gases renováveis como o biometano e, no futuro, hidrogênio verde.
É fundamental continuar trabalhando para implementar todo o potencial da Espanha e não perder a oportunidade que o elevado grau de maturidade tecnológica já atingido representa em toda a cadeia de valor dos gases renováveis, os recursos e capacidades que nosso país possui. É crucial aprofundar o desenvolvimento dos mecanismos de apoio adequados, do ponto de vista do suporte à produção de biogás-biometano e a sua inclusão nas redes de gás.
Qual é a demanda de gás na Espanha? Quais são os principais consumidores?
A demanda de gás natural em 2021 na Espanha aumentou 5% com respeito ao ano anterior, posicionando-se em 378,4 TWh. Trata-se de um valor 9,2% superior à média dos últimos dez anos e o segundo mais alto desde 2011. O crescimento deve-se em grande parte à recuperação da atividade econômica depois do impacto provocado pela pandemia de Covid-19 em 2020 e às temperaturas mais frias registradas no início do ano.
Por setores, a demanda convencional, destinada a residências, comércios e indústrias, registrou um aumento de 6,2%, atingindo 288 TWh, enquanto a demanda para geração elétrica aumentou 1,6%, atingindo 90 TWh, o segundo valor mais alto da demanda desde 2011. Nesse sentido, é importante destacar o papel dos ciclos combinados, que evitaram um colapso do sistema elétrico no meio de uma tempestade de frio e neve sem precedentes, garantindo com sua flexibilidade e eficiência o fornecimento elétrico a residências e indústrias.
De onde procede o gás consumido na Espanha?
Há décadas a rede de infraestruturas do sistema de gás na Espanha é referência na Europa pela diversificação de seu abastecimento.
O sistema conta com conexões internacionais por gasoduto com Portugal, França e Argélia. Além disso, contamos com infraestruturas de recebimento, armazenamento e regasificação de gás natural liquefeito (GNL), que são as de maior capacidade da Europa, fundamentais para garantir a segurança de fornecimento de nosso país.
Há seis plantas espalhadas por toda a costa espanhola, onde o GNL é submetido a um processo de regasificação pelo qual o gás que chega de barco em estado líquido é transformado em gasoso. Isso é necessário para injetá-lo nas redes de distribuição de gás e transportá-lo até os pontos de consumo: residências, indústrias e plantas de geração elétrica (ciclos combinados). O fornecimento de GNL representou 54% do abastecimento total de gás da Espanha em 2021 e a distribuição total segundo as diferentes origens foi a seguinte:
Qual é a capacidade de armazenamento e regasificação da Espanha?
A Espanha conta com uma capacidade de armazenamento total de 3.316.500 m3 de GNL, divididos em 25 tanques das seis plantas de recebimento que possuímos: Barcelona, Huelva, Cartagena, Bilbao, Sagunto e Mugardos. A capacidade máxima de vaporização (regasificação) dessas plantas é de 6.862.800 Nm3/h.
A Espanha dispõe da maior capacidade de armazenamento e regasificação de GNL da UE e do Reino Unido; um terço e pouco mais de um quarto, respectivamente. Esse potencial permite que a Espanha enfrente com maior tranquilidade do que seus vizinhos, ao menos em termos de segurança de fornecimento, a atual crise desencadeada pela invasão da Rússia na Ucrânia.
Existe um contexto normativo que favorece o setor como alavanca na descarbonização da energia?
Os gases renováveis, e em particular o biometano, contribuem para a redução de emissões de CO2 e fomentam a economia circular, solucionando o problema de gerenciamento de resíduos. Nesse sentido, com a necessária colaboração público-privada, estimamos que com o biometano se poderia descarbonizar praticamente 50% da demanda atual de gás natural para uso industrial, doméstico e comercial (demanda convencional) na Espanha, pelo que se torna necessário fixar objetivos ambiciosos no curto prazo.
No dia 30 de março passado, foi publicado no BOE o Real Decreto-lei 6/2022, através do qual foram adotadas medidas urgentes no âmbito do Plano Nacional de resposta às consequências econômicas e sociais da guerra na Ucrânia. O Decreto incluiu uma série de disposições específicas relativas aos gases renováveis, mas – assim como ocorreu com a rota do biogás – representou a perda de uma nova oportunidade para o impulso e desenvolvimento de gases renováveis.
No contexto atual, apostando na diversificação das fontes de origem e na segurança do fornecimento de gases renováveis, as propostas obtidas não estão alinhadas com o potencial da Espanha nem com os objetivos da própria Comissão Europeia para 2030.
Como as propostas repercutem no potencial espanhol e nos desafios internacionais?
As medidas propostas para agilizar a tramitação de projetos de energias renováveis elétricas em relação às renováveis térmicas são totalmente assimétricas. Elas limitam o tratamento da injeção de biometano nas redes de gás e não lhes dão condições para instalações de utilidade pública. Dessa maneira, estão sendo excluídas dos processos de expropriação e consulta da Lei de Hidrocarbonetos.
Essas disposições vão de encontro ao suposto objetivo de favorecer uma rápida implementação dos gases renováveis, que contribuiriam para reduzir a dependência energética exterior. Além disso, coloca-se em risco a viabilidade de uma parte significativa dos projetos, pois atrasam a sua implementação e geram uma insegurança jurídica desnecessária.
É hora de avançar na implementação e adaptação das infraestruturas para o aproveitamento de todos os gases renováveis: por um lado, sendo mais ambiciosos com os objetivos que pode assumir nosso país como produtor de biogás e biometano. Por outro lado, devemos seguir ampliando as interconexões com a Europa.
A Espanha poderia se converter num polo europeu? Qual seria o ponto de partida e quais seriam os desafios?
No contexto atual, a Espanha pode ocupar um papel fundamental como polo para o fornecimento de gás para nossos parceiros europeus, aproveitando sua infraestrutura e capacidade de armazenamento e regasificação.
Uma infraestrutura que, por outro lado, deve continuar sendo melhorada, especialmente em termos da ampliação da capacidade de interconexão com a França, em alinhamento com o REPower EU, concebendo esses investimentos sobretudo como soluções de médio e longo prazo. Nesse aspecto, é importante recordar que através dessas infraestruturas podem circular, eficientemente em termos de custos, gases renováveis como o biometano ou o hidrogênio verde, que serão essenciais no futuro verde e na transformação energética da Europa.
Como pode ser explorada a situação geoestratégica da Espanha?
Se contássemos com a adequada e suficiente capacidade de exportação através dos Pirineus, a Espanha poderia melhorar a segurança de fornecimento de gás na Europa. A capacidade nominal reversível de exportação para a França (Europa) é de 225,00 GWh/d. Portanto, as possibilidades de enviar gás aos países mais expostos diante de uma possível interrupção do fornecimento da Rússia são limitadas, apesar de contar com a relevante infraestrutura de recepção de GNL e o gasoduto que transporta gás a partir da Argélia.
Com o projeto MidCat, a interconexão de gás entre a Espanha e a França através da Catalunha, que não foi completada, a capacidade de exportação para a Europa teria sido dobrada. Essa possível transferência de gás procedente do norte da África ou das plantas de regasificação não eliminaria a forte dependência europeia da Rússia, mas modificaria as atuais proporções.
Seria um passo adiante para o estabelecimento de um maior equilíbrio e teria uma relevante importância estratégica, além do início do funcionamento de outras novas plantas de regasificação na Europa, como as que a Alemanha quer desenvolver de imediato.
Como consequência do conflito na Ucrânia e a decisão da UE de reduzir sua dependência energética da Rússia, os projetos de interconexão energética entre os países-membros assumem uma nova perspectiva.
A segurança de fornecimento é hoje a prioridade. Porém, as infraestruturas de interconexão são também uma ferramenta essencial para atingir os objetivos do mercado interior. A Península Ibérica é uma das regiões que, devido à sua posição geográfica, tem um nível limitado de interconexão com o resto do mercado europeu, por isso são necessários maiores esforços para a integração dos mercados de eletricidade e gás na Europa.
Essa infraestrutura não só permitiria atender as necessidades atuais no médio prazo (seriam necessários 2-3 anos para desenvolvê-la), mas também em um horizonte temporário mais longínquo, para depois de 2030, como duto para transportar gases renováveis ou baixos em carbono produzidos na Espanha, ou até no norte da África. Trata-se de uma resposta alinhada com o compromisso do setor de gás europeu com a descarbonização e alinhada com os objetivos climáticos e de segurança de fornecimento da União Europeia.
Joan Batalha é presidente da Associação Espanhola do Gás, SEDIGAS. Batalha conta com uma ampla trajetória profissional vinculada ao setor energético. Desde 2015, ocupa o cargo de diretor-geral na Fundação para a Sustentabilidade Energética e Ambiental (FUNSEAM), uma instituição sem fins lucrativos cuja missão é a investigação no âmbito da economia da energia e a promoção da sustentabilidade energética e do meio ambiente.
Entre 2005 e 2011, foi diretor do Gabinete da Presidência na Comissão Nacional de Energia (CNE), integrada atualmente na CNMC. Posteriormente, ocupou o cargo de conselheiro desse órgão, responsável pela definição da implementação do marco regulamentar do setor energético na Espanha até 2013.
Licenciado em Economia pela Universidade de Barcelona e Doutor em Economia – Prêmio Extraordinário de Doutorado pela Universidade Rovira i Virgili -, completou sua formação com o Programa de Direção Geral (PDG) do IESE da Universidade de Navarra e Mestrado em Regulação Energética pela Florence School of Regulation do European University Institute. Sua atividade de pesquisa acadêmica foi reconhecida em 2011, quando lhe foi outorgado o Prêmio de Economia “Joan Sardà Dexeus” pela obra “A indústria catalã após a crise”.